quinta-feira, 29 de julho de 2010

A Dança de Vishnu e a Preservação da Vida

Dia 11 de agosto, quarta-feira, as 20 horas.
Facilitador Didata Cleber Castilhos
Local: Frater Espaço Biocêntrico, Rua Vicente da Fontoura, 1015 sala 201
Informações com o Facilitador:
clebercastilhos@yahoo.com.br
Telefones (051) 3332-5526 e 9814-4318


A Dança da Conservação da Vida e os atributos mitológicos de Vishnu

Com o crescimento do hinduísmo sobre o vedismo, o culto aos deuses se caracterizou cada vez mais em imagens antropomórficas; a concepção de uma unidade primordial "brahman”13 caiu no esquecimento e Vishnu e Shiva tornaram-se populares, introduzindo em suas esferas místicas elementos pré-arianos14.
Entrou na devoção a Vishnu, um fator novo - o épico, fruto do militarismo que se instalara nessa época na Índia. Vishnu herdou certas funções que nos Vedas cabiam a Indra15. Assumiu, primeiramente, uma função cósmica como Narayana, eixo e conservador do mundo. O culto a Vishnu se desenvolveu, também, harmonizado com as concepções cíclicas da história do universo, e segundo a lei da reencarnação, no que se chamou de "doutrina dos avatares”. Conforme tal doutrina, o tempo humano e o divino estão intimamente associados. Para os hindus, o universo é a respiração de Brahmã; supõe alternâncias de expansão e contração, segundo a sincronia de grandes e pequenos ciclos. Nos intervalos entre o dia (expansão) e a noite (contração), há o pralaya, a dissolução que prepara o reinício de um novo ciclo.
De acordo com esta mitologia, cada ciclo cósmico está subordinado em quatro yugas ou idades do universo. Podem ser comparadas às quatro idades da tradição greco-romana; semelhante a essa, ocorre um declínio moral à medida que o ciclo prossegue. As idades do período clássico grego, receberam seus nomes dos metais: ouro, prata, bronze e ferro; as hindus, dos quatro arremessos do jogo de dados indiano: krta, tretã, dvãpara e kali.
Compreender esta cosmovisão é a chave mestra que pode nos dar acesso à filosofia perene da índia. Tarefa que nos parece difícil, mas como nos anima Zimmer:

"Essa vasta consciência do tempo, que transcende a breve duração de uma vida individual ou até a biografia de uma raça, é a consciência temporal da própria natureza. Esta conhece não apenas os séculos, mas as eras -geológicas, astronômicas -, transcendendo-as. Os egos multitudinários são seus filhos, mas sua preocupação é a espécie; as idades do mundo são os menores períodos de tempo que concede às várias espécies que cria e às quais permite morrer, por fim (como os dinossauros, os mamutes e os pássaros gigantescos). A Índia - como se fosse a Vida meditando sobre si mesma - mede o tempo em períodos comparáveis aos da astronomia, geologia e paleontologia. Considera-o e a si mesma sob o ponto de vista biológico e das espécies, não dos eus efêmeros. Estes envelhecem, ao passo que aquelas são antigas e, portanto, eternamente jovens.
Nós, ocidentais, por outro lado, vemos na história do mundo a biografia da espécie humana, em particular do homem ocidental, a quem consideramos o mais importante membro da família. A biografia é uma forma de ver e representar que se concentra no singular, no irreproduzível, em algum dos âmbitos da existência, revelando então os indícios denotadores de direção e sentido. Pensamos em egos, em vidas e indivíduos, não na Vida. Nosso objetivo não é o de nos inserirmos, através de nossa atuação humana, no plano universal da natureza, mas sim de nos opormos a ele, com nosso egocentrismo obstinado. Por enquanto, as ciências físicas e biológicas - que são relativamente jovens - ainda não afetaram a tendência geral do nosso humanismo tradicional. Também não nos demos conta, até agora, de suas possíveis implicações filosóficas (exceto quanto à lição de “progresso” que gostamos de deduzir de sua evolução). Chegamos a ponto de, deparando-nos com algo afim, nos éons hindus, conservamo-nos, sob o ponto de vista emocional, absolutamente frios. Não temos capacidade ou preparação para preencher os espantosos yugas com o significado da vida. Nossa concepção das longas eras geológicas que precederam a ocupação humana do planeta e que, espera-se, a sucederão, e os números astronômicos com que descrevemos o espaço exterior e as rotas dos astros, podem, em certa medida, nos terem preparado para uma concepção dos limites matemáticos da visão; mas não conseguimos perceber com nitidez qual é a sua importância para uma filosofia prática da vida humana”16 .

A primeira yuga, cuja duração é de quatro vezes maior que a última, chama-se krta yuga. É um tempo de felicidade, beleza e verdade, O dharma, a ordem moral do universo, firma-se durante esse período sobre as "quatro pernas da vaca sagrada". O “quatro", o quadrado, significa a totalidade, é o lance perfeito dos dados.
A segunda, de duração três vezes maior que a última, chama-se tretrã yuga, onde brota a inquietude. Durante essa idade, os homens esquecem as leis (que antes eram espontâneas), precisando as mesmas serem aprendidas.
Dvãpara yuga é a idade do perigoso equilíbrio entre os opostos, perfeição e imperfeição, luz e trevas. Neste ciclo, apenas dois dos quatro quartos do dharma têm ainda ordenamento no mundo manifestado - os outros, perderam-se entre os homens. A perfeição da ordem espiritual não rege mais a vida dos homens e do universo. A vaca sagrada, agora, apóia-se apenas em duas pernas.
E, finalmente, a última e menor chama-se kali yuga; significa "a pior de todas as coisas". O homem e o mundo atingem o limite do que têm de pior. É o período de trevas, medos e dissolução, que transforma o universo em nada, reiniciando um novo ciclo.
Nesse estranho quadro do universo, a Índia coloca a doutrina dos avatares propriamente dita. Segundo esta concepção, Vishnu encarna como homem ou animal, no início de cada maha-yuga17, a grande idade. O retorno do deus traz ao mundo, um ensinamento divino que conduz à felicidade e à virtude, de modo que a humanidade deve se comportar segundo o dharma (a lei divina). Mas, conforme o tempo passa, os homens vão esquecendo a revelação divina, vão deturpando a mensagem do Avatar, vão se afastando do dharma e se corrompendo até que, findo o período de trevas (kalí yuga), a ilusão se desfaz e Vishnu novamente reencarna trazendo uma nova revelação, iniciando outro maha-yuga.
Avatar é um termo sânscrito, aplicado a Vishnu, que significa "descida", ou "aquele que desce", indicando as sucessivas reencarnações do deus :


- As primeiras três são na forma de animais: (1) peixe, (2) tartaruga, (3) javali. Segue-se um ser meio humano e meio animalesco, (4) o homem-leão; vem então o (5) anão Vamana, cuja lenda já se encontra na mais antiga literatura indiana. A Vamana segue-se (6) Rama-com-machado, uma das mais significativas encarnações de Vishnu que, como herói do Ramayana vence o rei dos demônios Ravana. Rama (7) como marido afetuoso, rei amistoso e príncipe corajoso, representa a imagem ideal do homem indiano. A oitava encarnação de Vishnu é (8) Krishna, uma das mais populares divindades hindus, que está cercado por um grande ciclo de mitos. Segundo a lenda, Krishna era um rapaz excepcionalmente amável, sempre ocupado em fazer travessuras. Nos mitos, a dança de amor é o ponto culminante das experiências de Krishna com as Gopis (pastoras), e representa também o fim de sua juventude. Numa noite iluminada pela Lua, Krishna tocou a flauta para atrair as pastoras e dar-lhes uma amostra da alegria que seria estar com ele no paraíso. Ele cantou e dançou, iniciando-as nos segredos de "eros". Para isso, o jovem deus tocou sedutoramente sua flauta, levando as apaixonadas pastoras ao êxtase. Seis meses durou a dança com suas alegorias eróticas, terminando com um banho no rio, do qual toda a sociedade participou. A nona encarnação do deus é (9) Buda18 e a última (10) Kalki, a encarnação vindoura.
Inspirado nesta fértil e rica mitologia, Rolando Toro criou a Dança da Conservação da Vida. Toro buscou resgatar os movimentos de vida através da homeostase de Vishnu:

"Vishnu es el dios de la conservación de los ciclos vitales. Representa la fuerte inercia biológica que reitera y conserva la vida y el universo. Es la belleza de lo permanente, lo que genera seguridad y confianza, Todos los días, el amanecer; el mismo sol apareciendo, siempre para brindar la vida; todas las noches, la luna en la oscuridad; la misma secuencia de estaciones; la notable estabilidad de las estrellas en la bóveda celeste. Los seres queridos permaneciendo dentro de nosotros, la felicidad de ver siempre un mismo rostro”.19

Se na Dança das Transformações (Shiva), encontramos as condições necessárias para darmos um salto evolutivo (transtase), mudando as formas de equilíbrio, em Vishnu tratamos de consolidar o estabelecido - através de um processo que garanta a homeostase. Induz-se, assim, "la profunda necesidad de movernos dentro de padrones de estabilidad, con referencia a un centro afectivo adherente, pleno de continente. El cuidado del calor íntimo de la vida y del hogar, guardar el fuego dentro de nosotros, permanecer en el éxtasis de lo cotidiano, conectados a la tierra y rechazando los cambios, dar a la vida la solemnidad indispensable para hacer de ella un lar de crecimiento y maduración".20

A Dança da Conservação da Vida está firmada por Toro em onze etapas, que passo a reproduzir; acrescentando, quando possível, atributos e argumentos associados ao mito estudado.

1 - Busca do centro

Com os pés firmados no chão, oscilamos o corpo com movimentos leves em sentido lateral e antero-posterior, até encontrarmos nosso eixo, o centro. Diminui-se esse movimento até sentirmos a estabilidade.
O equilíbrio é a base para a conservação da vida .
Encontrando nosso eixo, o centro, encontramos também o axis mundi, o eixo do mundo. Nesse momento, somos o próprio Cosmos.
Nas palavras de Eliade: “um Universo origina-se a partir do seu Centro, estende-se a partir de um ponto central que é como o seu “umbigo”. É assim que, segundo o Rig Veda (X,149), nasce e se desenvolve o Universo: a partir de um núcleo, de um ponto central. (...) Por outro lado, uma vez que a criação do homem é uma réplica da cosmogonia, daí resulta que o primeiro homem foi fabricado no “umbigo da Terra" (tradição mesopotâmica), no Centro do Mundo (tradição iraniana), no Paraíso situado no “umbigo da Terra" ou em Jerusalém (tradições judaico-cristãs). E nem podia ser de outra forma, aliás, pois o Centro é justamente o lugar onde se efetua uma ruptura de nível, onde o espaço se torna sagrado, real por excelência. Uma criação implica superabundância da realidade, ou, em outras palavras, uma irrupção do sagrado no mundo."21

2 -Variações simétricas

Com movimentos leves e simétricos, deslocamos os braços bem próximos do eixo central do nosso corpo.
Esses movimentos simbolizam as afinidades, o que há de comum entre nós e as demais pessoas, entre nós e o universo.

3 -Variações assimétricas

Com movimentos leves e assimétricos, deslocamos os braços próximos do eixo central do nosso corpo.
Esses movimentos simbolizam as diferenças, a oposição natural, o que torna a nossa vida única e distinta das outras pessoas.

"O segredo de Mãyã é a identidade dos opostos. (...) O "e” que une essas incompatibilidades expressa o caráter fundamental do Ser Supremo, senhor e controlador de Mãyã e cujo energia (oh, paradoxo!) é Mãyã. Os opostos têm fundamentalmente uma única essência; são dois aspectos do mesmo Vishnu".22

4 - Posição de Vishnu

Com o corpo em equilíbrio, apoiado sobre a coxa esquerda, a mão esquerda toca a borda externa do osso femural.
Este gesto (katyvalambita-hasta) simboliza a serenidade e tranqüilidade, a certeza e a determinação das coisas que queremos conservar e assegurar em nossas vidas.
A mão direita levantada à altura do peito, com a palma para a frente, num delicado gesto de deter os elementos externos (abhaya-mudrã), impõe respeito e reafirma a nossa vontade, a nossa escolha na vida.


5 - Rechaço às mudanças

Neste momento, as coisas ou situações que desejamos afastar de nós, rejeitamos, avançando a mão direita num suave gesto de rechaço. É um movimento com decisão e sabedoria. Com esse gesto, colocamos ordem no mundo, garantimos a sobrevivência da espécie e escolhemos o estilo de vida que queremos para nós.

"O papel de Vishnu, enquanto preservador do mundo, envolve sua função de mediador ou moderador das energias antagônicas em atividade no processo vital do universo. Ele aplaca o impacto avassalador dos poderes destrutivos e desequilibrantes. Consegue-o, descendo ao universo encarnado em algum de seus avatares, refreando ou subjugando as forças terríveis que ameaçam trazer a ruína em geral, restaurando, por fim, o equilíbrio efetivo entre os opostos".23

6 - Dança simétrica, com movimentos amplos

Sabendo o que queremos conservar, podemos ampliar nossos horizontes, percebendo que as igualdades e diferenças são movimentos complementares. Nessa dança, reforçamos nossas afinidades com movimentos amplos e simétricos, em torno de nosso eixo.

7 - Dança assimétrica, com movimentos amplos

Nesta dança, com movimentos amplos e assimétricos em torno de nosso eixo, aumentamos o conhecimento das diferenças e como as sentimos. A diferença é uma forma alternativa de existência .

8 - Cuidando do fogo

Com a força e serenidade que sabemos possuir, elevamos nossas mãos à altura do abdômen formando uma esfera invisível que representa o nosso calor, o fogo que alimenta nossa vida - o fogo que é a nossa própria vida, e procuramos sentir o magnetismo fluindo de uma mão para outra.

“A produção de tal energia calorífera, seu armazenamento e uso para finalidades mágicas, é o objetivo da mais antiga forma de prática iogue. Nos mitos védicos tal energia é empregada pelos próprios deuses para inúmeros propósitos, em especial para o da criação. O deus-criador, ao aquecer a si mesmo, produz o universo: pela incandescência interna, ou emitindo uma emanação em forma de perspiração (...)”.24

9 - Guardando o fogo

Levamos essa esfera, que contém o nosso fogo, até o nosso peito, num gesto de intimidade. Os valores afetivos que representam o que há de melhor em nós, guardam-se dentro do peito. Vivenciamos assim, o profundo amor que cada um tem de si mesmo.

10 - Círculo de proteção

Os braços descem desde o centro e geram um círculo de proteção que se fecha sobre a cabeça.



Notas

13 O substantivo "brahman" (neutro) e Brahmã (masculino) não devem ser confundidos. O primeiro, refere-se ao Absoluto transcendente e imanente, além das classificações diferenciadoras de sexo; o segundo, é uma personificação antropomórfica do Criador Demiúrgico. "Brahman" é um termo metafísico, Brahmã uma designação mitológica.

14 Entre 3000- 2000 a.C., floresceu no antigo vale Indo, uma civilização altamente desenvolvida. Escavações realizadas em Moenjodaro e Harappa encontraram valiosos materiais, essenciais ao mapeamento arqueológico dos povos hindus. Com a invasão dos povos arianos, vindos do noroeste, uma nova religião foi estabelecida, ainda que com forte influência pré-ariana. Síntese desses processos culturais, o vedismo marcou o apogeu da casta brahmane. Porém, pressionado, o vedismo cedeu lugar ao hinduísmo. Os deuses passaram a ser representados antropomorficamente e foram erguidos templos para culto, nos lugares onde antes se realizavam sacrifícios. A religião se popularizou e foram incorporadas aos deuses supremos, muitas características dos deuses locais. Devido a herança dos povos antigos, os novos deuses usaram "veículos" (vahanas), aparecendo montados nos mais diversos animais: Brahmã e o cisne Hamsa, Shiva e o touro Nandi, Vishnu e a águia Garuda e a serpente Ananta.

15 Indra, no período védico, foi o deus do céu, o soberano dos deuses.

16 ZIMMER, Heinrich. op. cit., pp.22-23.

17 Cada Maha- Yuga possui 4.320.000 anos terrestres. É a soma das quatro idades do universo.

18Nota-se, claramente, a intenção do hinduísmo em impedir o crescimento e expansão do budismo. Assegurando Buda como avatar de Vishnu, os hinduístas controlariam o expressivo contingente de budistas que surgiam na Índia.

19 TORO, Rolando. op cit., p.405.


20 Ibid., p.405.

21 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano, a essência das religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1992. pp.40-41

22 ZIMMER, Heinrich. op.cit. p.44

23 Ibid.,. pp. 75- 76.
24 Ibid., p.94.


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